sábado, 29 de novembro de 2008

.Eu, condenado à morte, escapei para contar

O médico palestiniano Ashraf al-Hajuj foi condenado à morte na Líbia, juntamente com cinco enfermeiras búlgaras, tendo a UE negociado com Tripoli a libertação do grupo no passado mês de Julho. O médico esteve em Lisboa a semana passada para deixar o seu testemunho numa conferência internacional contra a pena de morte. Esta é sua a história relatada a Sofia Branco.
Era Janeiro quando a ideia da morte passou a ocupar os meus dias. Sou médico e, portanto, prezo a vida acima de tudo. A morte não me é, naturalmente, algo estranho, mas é impossível descrever-vos como é difícil viver pensando nela a cada minuto. Saber que ela pode ser-me imposta a qualquer momento.
A minha pena começou em 1999 e durou oito anos e sete meses. Oito anos e sete meses durante os quais foram-me matando, todos os dias, aos poucos.
No corredor da morte, onde passei a maior parte desses oito anos e sete meses, sofri. Muito. Tanto que não há palavras que lhe possam ser fiéis. Eis alguns dos horrores por que passei: privação do sono e de alimento; tempos infinitos numa cela de dois por dois metros; total isolamento durante dez meses; agressões sexuais de vários tipos; torturas de toda a espécie, choques eléctricos incluídos; pressão psicológica. Fizeram-me o que quiseram. Ainda hoje tenho marcas, mordeduras de cães. Conheci pessoas que aguardavam há 15 anos no mesmo corredor. Não o desejo a ninguém.
Fui acusado, juntamente com cinco enfermeiras búlgaras, de infectar quatro centenas de crianças com HIV/sida, das quais cinco dezenas acabaram por morrer. Trabalhávamos no Hospital Pediátrico Al-Fath, em Benghazi, na Líbia. Eu era interno e só lá estava há dois meses, em rotação, quase por acaso. Elas tinham chegado há seis. Não nos conhecíamos antes. Ficámos ligados para sempre: torturam-nas à minha frente, nuas.
O regime líbio precisava de bodes expiatórios para a tragédia – o maior surto de HIV de sempre registado num hospital. As condições de higiene eram nulas, o equipamento médico muito deteriorado. O hospital nem para animais servia.
Vários especialistas acharam que esses, sim, deviam ser responsabilizados pela epidemia. Luc Montagnier, um dos cientistas que descobriu o vírus HIV, visitou o hospital e enviou um relatório no qual considerava que o elevado índice de hepatite B e C presente nas instalações apontava para falta de higiene, o que teria causado o surto. O relatório foi ignorado e as autoridades líbias pediram outro, a investigadores líbios.
Em artigo publicado na revista Nature, o biológo Oliver Pybus, da Universidade de Oxford, garantia, baseado em dados recolhidos nas crianças infectadas sob tratamento na Europa, que o surto de HIV aconteceu previamente à nossa chegada ao hospital – nalguns casos, anos antes.
Fomos julgados, mas não eram bem tribunais, eram mais circos, uma fantochada, uma encenação. Nada do que foi apresentado em nossa defesa foi sequer avaliado. Sentença: pena de morte por esquadrão de fuzilamento. Tudo foi manipulado pelo regime ditatorial de Muammar Khadafi.
Não tenho medo das palavras – medo de quê quando se teve a morte pendente sobre a cabeça durante oito anos e sete meses? Sejamos claros: hoje, não estaria aqui a falar-vos, se não tivesse entretanto obtido a nacionalidade búlgara. Porque venho do mundo árabe. Onde é fácil acusar alguém de conspiração, de ser agente da Mossad, ou da CIA – que teriam, segundo o regime de Khadafi, interesse em contaminar as crianças líbias com HIV/sida. A opinião pública árabe compra bem esta ideia, dando carta branca aos regimes para decidir da vida, ou da morte, dos "traidores".
Represento as vítimasMuitas vítimas não podem falar-vos como eu. Represento-as. Assim como às cinco enfermeiras búlgaras que, juntamente comigo, foram acusadas, apesar de inocentes.
A mobilização internacional foi grande. A Human Rights Watch e a Amnistia Internacional ajudaram na nossa defesa.
Sou livre na Bulgária, mas continuo prisioneiro na Líbia. Todos os tribunais – da primeira instância ao Supremo – mantiveram a sentença de morte.
Em Julho de 2007, depois de muita pressão internacional, um painel governamental comutou a pena para prisão perpétua. Já não era necessário. A 24 de Julho, fomos extraditados para a Bulgária, após um acordo conseguido pela União Europeia – e que implicava o tratamento das crianças em hospitais em França e Itália. Não se sabe muito desse acordo e muitas suspeitas pairaram no ar.
Chegámos a Sófia, capital da Bulgária, em avião presidencial francês, depois de uma curta deslocação a Trípoli de Cécilia, a mulher do primeiro-ministro Nicolas Sarkozy, e da comissária europeia para as Relações Externas Benita Ferrero-Waldner. Suspeita-se que Khadafi terá negociado o nosso resgate. Falou-se de acordos obscuros, de venda de armas, petróleo e aeronaves, entre a França e a Líbia. O que é certo é que nós, os seis condenados à morte, estávamos a salvo. Fomos logo amnistiados pelo Presidente búlgaro, Georgi Parvanov.
Tenho 38 anos e vivo e trabalho actualmente em Sófia. A minha família vive hoje na Holanda, com o estatuto de refugiados políticos. Estar aqui, em Lisboa, para vos deixar o meu testemunho, em nome do grupo de condenados à morte que represento, é um momento especial para mim. Graças ao vosso nobre activismo tive a oportunidade de viver outra vez. As pessoas não são perfeitas, mas podem mudar. Só Deus tem o direito de tirar a vida de alguém.
In jornal.publico.clix.pt, 16.10.2007

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