domingo, 7 de dezembro de 2008

.Agnés Varda na Padre Alberto Neto: depois do convite, o aperitivo




O sucesso de Glaneurs et la Glaneuse, de Agnés Varda, é sobejamente conhecido. Mesmo depois de ter sido difundido pelo Canal +, em horário nobre, o filme foi visto por 43000 pessoas em apenas nove semanas. Críticas entusiastas, filas de espera, cópias suplementares, exibição em diversos festivais, debates em catadupa, projecção em pequenas cidades de província, onde grande parte do filme se desenrola, são apenas alguns indicadores do sucesso que surpreendeu tudo e todos, realizadora incluída : “E foi assim que passou um dia na ilha de Aix, outro na ilha de Yeu, nas aldeias de Vendée, de Gironde ou do Maciço Central. Tudo isso ao mesmo tempo que as grandes cidades esperavam pela sua cópia. Tem piada...”.
O caso não mereceria a nossa atenção se não se tratasse de um trabalho realizado num formato habitualmente condenado à ruminância intelectualizante de uma minoria mais ou menos especializada, o documentário. À primeira vista, Glaneurs et la Glaneuse não reúne, de facto, nenhum dos ingredientes geralmente associados aos sucessos de bilheteira. Não se trata de uma narrativa circular, com ou sem final feliz, dispensa as estrelas e os efeitos especiais que arrastam multidões, não se propõe alienar o público ávido de uma vida ausente, numa palavra, não recorre a artifícios fáceis ou qualquer outra estratégia populista. Pelo contrário, é a realidade, tal qual ela se apresenta a quem se dispuser a parar e a olhá-la, bem com as verdadeiras pessoas, e apenas essas, que aí devem ser procuradas. Tudo isto de acordo com uma paixão que a realizadora confessa sem qualquer hesitação: “ O cinema do real faz-me sempre pensar numa expressão que utilizo quando digo «gosto de filmar pessoas verdadeiras». Não é para falar mal dos actores nem para minimizar a importância dos estúdios, mas nada me excita tanto como filmar a realidade.”
Talvez seja esse o motivo do sucesso deste documentário. O facto de nos podermos ver retratados, sem make-up, a nu, de repente transformados em personagens de um filme cujo cenário, embora nem sempre reparemos nele, se confunde com as ruas, os campos, enfim, os espaços que conhecemos de todos os dias. Numa palavra, porque é o real, a vida presente, e não outra, que a autora nos convida a visitar. Mais de perto, no entanto, verificamos que uma simples vontade súbita de real, ainda que sabiamente estimulada pela câmara de Agnés varda, não chega para explicar a popularidade de que falamos. E isto por duas razões.
Em primeiro lugar, porque embora sejamos nós quem se passeia nas telas, é na condição de sans toit ni loi, título de um outro trabalho seu realizado em 1983, que isso quase sempre acontece. Com efeito, são os sem-abrigo, os desempregados, os clandestinos, numa palavra, os marginalizados, ainda que encarados como legítimos herdeiros de uma actividade nobre e ancestral, a respiga, quem mais prende a atenção da autora. Em segundo lugar, porque não podemos deixar de olhar para esses que depenicam os restos das bancas dos mercados e os caixotes de lixo que pontilham as cidades, tudo isto ao som de rap, música das franjas por excelência, como uma consequência imediata da sociedade tecnológica e de consumo excessivo que paulatinamente fomos construindo. Numa palavra, como uma invenção do homem contemporâneo, que simultaneamente se inundou de saber e de todos os dejectos que inevitavelmente daí derivam. De um modo geral, porque não é de todo agradável observar o resultado a que chegámos: uma sociedade que não sabe lidar com os desperdícios que produz.
O real com que a realizadora nos confronta, ainda que de uma forma quase poética não é, de facto, um real agradável de se ver. Ainda que por vezes filmado em locais bucólicos e de algum requinte, como acontece com as casas de alguns entrevistados e os museus por onde vai passando, não é da realidade que todos gostaríamos de poder ver que se trata. Mas daquela que, precisamente porque estamos imersos neles, se decompõe em desperdícios, restos indesejáveis e outros dejectos que assim se vão acumulando. O mesmo é dizer, apenas uma determinada visão do real, apenas uma interpretação, a visão heterológica da autora, por si só já motivo de interesse e com que agora nos surpreende : “ É isso, a relação com o real, o olhar duplo, a capacidade de o ver como real e de o ver como outra coisa. (...) É mesmo isso que eu desejo: encurralar a realidade até que se torne imaginária, retomar o imaginário e servir-me da realidade. »
Como Dali, em O rosto paranóico, que tinha recuperado uma foto de uma aldeia africana, com uma pequena casa que pousa sobre o chão como uma semi-esfera - as árvores e os nativos estão sentados de tal maneira que os podíamos ver como um nariz, uma boca, numa palavra, como um rosto escondido -, a realizadora mostra-nos a realidade tal como a vê. E o que ela vê, ao mesmo tempo que nos convida a seguir o seu olhar, não é de todo agradável : “Uma vez no horror. Sou uma besta. Pior, sou uma besta que eu não conheço». De facto, tudo funciona como se a realizadora nos pegasse pela mão, gesto simbolizado pelo modo demorado com que filma a sua, envelhecida, flácida, e nos levasse a ver o que também somos, mas que geralmente preferimos não ver. E que vemos? Toneladas de batatas que são desperdiçadas todos os anos só porque não atingem o tamanho requerido. Toneladas de maçãs destinadas a apodrecer. Contentores repletos de comida desperdiçada. Vinhas inteiras abandonadas por não estarmos na época em que supostamente a qualidade do vinho é garantida. Frigoríficos, fogões e toda a espécie de electrodomésticos que se amontoam pelas ruas. Enfim, a mesma realidade com que lidamos todos os dias, mas agora com um rosto novo, um nariz novo, uma boca nova, pelo menos para a maioria que não está devidamente preparada. Talvez seja esse o segredo do sucesso da autora.
Mas se a maioria não se apercebe da realidade delirante em que navega, outros há, eles próprios resultado directo da sociedade de consumo e desperdício excessivos, que insistem em contrariar a aparente inevitabilidade de nada poder fazer a partir dos restos produzidos. Falamos agora dos respigadores, os verdadeiros protagonistas da realidade traçada por Varda, cujas experiências e expressões várias se sucedem como num desfile ao longo de todo o filme. De facto, falar de Les Glaneurs e de uma extensa galeria de respigadores que, desde épocas mais remotas em que a actividade era vista com naturalidade, até hoje em que surgem novas e surpreendentes expressões da respiga, são uma e a mesma coisa. É assim, a partir de um célebre quadro de Millet –As Respigadoras-, que a realizadora nos vai apresentando, um a um, os herdeiros actuais daquelas que ali serenamente apanham os restos abandonados de trigo. É assim, sem grande trabalho de montagem, de câmara digital em riste, que Varda nos vai confrontando com os heróis do admirável mundo novo. Equipas inteiras dos restaurantes do coração que respigam para garantir a subsistência dos sem abrigo, por si só já um excesso; desempregados e imigrantes clandestinos que se banqueteiam nos caixotes de lixo; os ciganos; alguém que se propõe ensinar a cozinhar a partir das sobras; outros que produzem aguardente a partir de uvas excessivamente maduras e deixadas para trás; um pintor que cria a partir de objectos abandonados nas ruas; um pedreiro russo que constrói torres totémicas a partir de lixo e bonecas estragadas; Louis Pons, para quem a arte consiste em encontrar o equilíbrio no lixo que nos rodeia; os respigadores de ostras; os rastafarai que se recusam a ser incluídos numa qualquer ordem senão a da deriva; o voluntário que por razões éticas come há quinze anos do lixo e à noite ensina francês às comunidades desintegradas; um chinês cuja casa é inteiramente construída a partir de objectos que outros deixam para trás; uma sociedade que recupera frigoríficos das maneiras mais espantosas; uma creche onde se ensina a recuperar o lixo na produção de brinquedos; enfim, Varda, ela própria, que além de recuperar objectos ao longo das filmagens e os levar para casa, qual respigadora de imagens, constrói uma narrativa atípica - atípica porque surge como uma peça de jazz, a realizadora chega mesmo a abandonar a câmara ao sabor do acaso- a partir de situações e experiências que, uma vez isoladas, continuariam a escapar ao olhar desatento do discurso economicista: “É verdade que filmar, especialmente o documentário, é respigar. E isto porque aproveitas o que encontras; vergas-te; procuras; és curioso; tentas descobrir onde as coisas estão.”
O facto de Varda não se limitar a denunciar a panóplia de desperdícios que se vão acumulando e, sobretudo, o de insistir na ideia de que há quem reaproveite o aparentemente inaproveitável, indicam que é possível colocá-los ao serviço da produção e progresso social. É esse o sentido da sua insistência na ideia de criação múltipla a partir das franjas, das margens, daquilo que podemos considerar os dejectos e excrementos deixados pelos outros. O recurso ao discurso bíblico e judicial - a determinada altura podemos ver um juiz, em plena horta, explicando porque em determinadas zonas de França se pode, segundo a lei, respigar -, é também prova disso mesmo, a mesma tentativa de legitimar uma actividade que se recusa a aceitar a irredutibilidade do mundo dos restos. Por um lado, a assunção de uma dimensão que escapa à clarividência do cálculo e ao discurso economicista. Por outro, a ideia de que é possível conferir uma ordem, ainda que outra ordem, ao mundo desmedido dos restos. Tal como Louis Pons, um dos artistas entrevistados, cuja obsessão seria a de encontar uma ordem e um equilíbrio no lixo. Sugerindo, como Georges Bataille já tinha dito, duas coisas: que não haverá lugar para qualquer visão integral do sujeito se ignorarmos a dimensão que este não domina, aquela que escapa à sua vontade e à sua inteligência; além de que nenhuma economia resistirá, por muito forte que seja, veja-se a mais recente crise nos EUA, senão se atrever a olhar de frente, nos olhos, as sobras que vai inevitavelmente produzindo.

2 comentários:

Humano RicMosca disse...

Gostei muito do aperitivo professor. Fiquei curioso em ver o documentário. Amanhã se poder estarei no anfiteatro.

Tudo de bom para a conferência de amanhã :)

Humano Nuno disse...

Stor, peço desculpa por não ter estado na sua conferência mas, como o RicMosca disse, teste... =S
Espero que faça mais para eu ter a oportunidade de assistir