sábado, 24 de janeiro de 2009

.Ode à Condição Humana: "Ensaio sobre a Cegueira"

Caros cyber-leitores,

Talvez venha um pouco fora de prazo. Ainda assim, continua a fazer sentido. Decidi, por isso, publicar uma apreciação crítica ao filme "Ensaio sobre a Cegueira" de Fernando Meirelles, inspirado na obra homónima do Prémio Nobel português, José Saramago.

Veio a cegueira e, como por magia, o mundo abriu os olhos.

Polémico, controverso, sublime, intenso, pesado, forte, soberbo, chocante, revoltante, discriminatório, e tantos outros adjectivos, são os termos que me ocorrem para falar do filme que proponho. Talvez nenhum deles o caracterize fielmente, talvez todos os façam, talvez baste um para dar conta da sua essência.
A sua intensidade não passa despercebida. Ninguém, gostando ou repudiando, pode sentir-se indiferente a esta obra de inspiração portuguesa, realização brasileira e interpretação multinacional (americana, brasileira, mexicana, japonesa, entre muitas outras).
Apostando em nomes sonantes de Hollywood como Julianne Moore, Mark Ruffalo, Gael Garcia Bernal e Danny Glover, assim como em actores menos conhecidos, mas de incontestável talento, tais como Alice Braga, em franca ascensão, Yusuke Iseya e Yoshino Kimura, dois actores estreantes em lides “hollywoodescas”, Fernando Meirelles recria o universo paralelo de Saramago. Fá-lo, porém, ao mesmo tempo que lhe acrescenta a uma vertente multicultural e contemporânea, transpondo para o grande ecrã, com um incrível e adequado jogo de luzes- sombras, as mensagens ousadas do escritor português, que apenas pretendia acordar o mundo, fazendo-o fechar os olhos por um momento.
E se num momento nos roubassem o sentido que nos é mais querido? Se abríssemos os olhos e tudo fosse branco como um “mar de leite”? Se fôssemos obrigados a viver às escuras sob uma luz intensa que nos forçasse a olhar para o conteúdo e esquecer, por momentos, a forma? E se o anonimato, a ausência de repressões morais e outras normas sociais nos libertassem, mesmo das roupas que nos aprisionam?
A resposta que nos é dada é simples, curta e objectiva. Seríamos quem somos. Não quem parecemos ser ou gostaríamos de ser, apenas quem realmente somos. Despir-nos-íamos de preconceitos, ideologias inculcadas, de qualquer outro tipo de constrangimentos. Restar-nos-ia a nossa essência, nua e crua, sem floreados. A pacata dona de casa daria lugar à heroína que luta na sombra. O ancião esquecido, ao pregador de uma fé cega e pura. O charmoso e simpático barman, a um "rei" vil e amoral. Postos em xeque, todos fraquejam. Apenas alguns mantêm a dignidade num mundo indigno, cruel e imediato.
As questões levantadas não se esgotam com a temática da fragilidade e instabilidade humanas face às situações de crise, ramificam-se numa teia complexa de eventos intimamente ligados a fenómenos verosímeis e nada fictícios, como a segregação social. Como a resolução de problemas pelo afastamento, ignorando as suas causas e persistindo na análise das consequências imediatas. Assim como as reais relações interpessoais que se estabelecem entre seres que, à partida, pouco têm em comum, mas que acabam por estabelecer hierarquias e relações de cooperação, dominação, subjugação e hostilidade.
De salientar a fantástica edição e montagem do filme que proporcionou uma visão (repito) visão fiel da história veiculada pelo filme. Os flashes, o esbatimento de imagens e as diferentes perspectivas dão ao espectador uma observação (sublinho) observação única desta homenagem aos sentidos e à sua importância para uma contextualização geral do ambiente envolvente. A luz branca vista por todos os que se tornaram cegos simboliza a pureza, não no sentido de inocência, mas no sentido de verdade, de essência. Quando se tornam cegos, passam a ver para lá das formas superficiais e viajam até ao núcleo, descobrindo o mundo de uma forma nova, descobrindo-se a si mesmos. Daí que me pareçam desajustadas as críticas de algumas associações de invisuais, com o devido respeito e citando Saramago, porque são opiniões infundadas e manipuladas, visto que nenhum cego viu o filme. Além de que se o visse, observaria um mundo em que são glorificados, não rebaixados.
A última referência vai para Jullianne Moore, magistral no papel de líder, a mulher vidente de Saramago, detentora de uma visão superior a todos os outros que lhe permite conduzir os cegos. Qual Atlas de ombros frágeis, carregando o peso pesado do mundo que foi forçada a ver, sem que pudesse fechar os olhos.

6 comentários:

Humano Francisco disse...

Muito bom, Carolina! Obrigado pela tua visão!

Humano Francisco disse...

Além de "A Cidade de Deus" (alucinante!), Fernando Meirelles assinou outro filme notável: "O meu fiel jardinaeiro". Trata-se de uma história em torno do modo como alguns laboratórios se servem dos países mais pobres, sobretudo africanos, para testar medicinas em estudo...que tal um artigo sobre o problema?

Humano Francisco disse...

(claro que quando se lê "jardinaeiro" é "jardineiro" que deve ser lido)

Humana Carolina disse...

Também já vi o "Fiel Jardineiro", sublime, fantástico! Mas penso que se quiser postar algum artigo sobre o filme, terei de o rever, já não o vejo há 2 anos...

Humana Carolina disse...

Ah e tenho "A Cidade de Deus", fortíssimo, com interpretações genuínas e uma história marcante.

Prof. Elsa Nogueira disse...

Caros Humanos, vocês lêem, vêem bons filmes, são pessoas interessantes e interessadas e escrevem muito bem.
É por isso que vos deixo aqui o meu apelo para que participem nos concursos do Escritolândia.
Se por acaso também estiverem interessados em publicar artigos de opinião e/ou textos literários no blogue do Clube, não hesitem. Enviem por e-mail e eles serão publicados. Podem inclusivamente aproveitar para divulgar o vosso Projecto Humano. escritolandia-espan.blogspot.com escritolandia-espan@hotmail.com
Será um prazer contar convosco.
Continuação de bom trabalho!